A κένωσις De Jesus

 


Interpretando Filipenses, capítulo 2, versículos 5 a 7:

 

⁵ De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,

⁶ Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,

⁷ Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;

 

O texto em Filipenses, capítulo 2, versículos 5 a 7, destaca a importância de cultivar o mesmo sentimento que existia em Cristo Jesus. Ao afirmar que "sendo em forma de Deus", não buscou a usurpação para ser igual a Deus, a passagem suscita reflexões sobre a natureza divina de Jesus. A expressão "forma de Deus" não sugere uma condição passada, mas sim a atualidade da sua divindade. Jesus é a imagem visível de Deus, uma representação tangível da natureza divina. O termo "sendo" que melhor traduzido seria por “subsistindo” implica uma subsistência contínua, uma existência presente, refletindo a ideia de ὑπάρχων, que significa estar ou existir.

Ao afirmar que "não teve por usurpação ser igual a Deus", o texto destaca que Jesus, ao contrário de buscar a igualdade de maneira arrogante, escolheu a humildade. Ele não considerou a igualdade como algo a ser apreendido, mas voluntariamente esvaziou-se. A palavra grega ἐκένωσεν, derivada de κενόω, indica que Ele renunciou à retenção da igualdade.

A expressão "esvaziou-se a si mesmo" não implica uma perda da divindade, mas sim uma renúncia à posição de igualdade, uma abertura para a humildade. Jesus, ao esvaziar-se, não deixou de ser Todo-Poderoso, mas sim, de forma figurada, tornou-se semelhante aos homens em sua humildade. Este ato é simbolizado pelo pedido para ser glorificado pelo Pai na terra. Ao dizer "fazendo-se semelhante aos homens", o texto enfatiza que Jesus, por sua própria escolha, assumiu a forma de servo. Ele não usou sua natureza divina para se sobrepor aos homens, mas esvaziou-se para cumprir sua missão com humildade. A expressão "fazendo-se" destaca a ação pessoal de Jesus, não atribuída ao Pai.

Dessa forma, os versículos 5 a 7 tratam exclusivamente de Jesus, revelando sua decisão voluntária de renunciar à igualdade, esvaziar-se em humildade e tornar-se semelhante aos homens para cumprir sua missão divina.      

 

A Compreensão Da κένωσις Do Lógos De Deus Ao Longo Da História

Como vimos o Logos é o que se esvazia na encarnação, ao assumir a forma de servo. Ele reteve o “ser igual a Deus”, isto é, a glória, que foi abandonada na kénosis. A partir do confronto com a cultura grega e o aparecimento de adversários da fé cristã, foi preciso ainda esclarecer que tipo de acontecimento foi esse que se deu em Deus: Era possível? Foi real? É conciliável com um conceito de Deus imutável e impassível? Ver-se-á como os Padres e doutores da Igreja, trataram essas questões ao longo dos séculos.


1)      Orígenes (185-254 d.C.) se refere a essa grave objeção no seu escrito Contra Celso:

 

Deus é bom, belo, feliz, no mais alto grau e excelência. Por isso, se ele desce aos homens, deve passar por mudança: mudança do bem ao mal, da beleza à feiura, da felicidade à desgraça, do estado melhor ao pior. Mas, quem escolheria semelhante mudança? É verdade que para o mortal é próprio de sua natureza mudar e se transformar, mas para o imortal, é ser idêntico e imutável. Deus não poderia, pois admitir tal mudança. [...] Ou Deus se transformou realmente, como pensam os cristãos, num corpo mortal e, por consequência, se tornou sujeito ao sofrimento, o que é absolutamente impossível; ou Ele mesmo não se transformou, mas fez os espectadores acreditarem que havia se transformado, induzindo-os ao erro, o que o converteria num mentiroso e estaria em contradição com sua divindade. (ORÍGENES, 2004).

 

Orígenes (2004) responde aos ataques de Celso explicando que a descida de Deus à humanidade não implica mudança Nele. Permanecendo imutável por essência, Ele foi condescendente com a miséria humana e só se “aniquilou” por um “excesso de amor” aos homens, para ser recebido entre eles, para reconduzi-los e elevá-los ao brilho da divindade. Se houve algum tipo de mudança em Deus, esta foi acidental e aconteceu para que Ele pudesse se adaptar às limitações da condição humana.

 

2)      Atanásio (296-373 d.C.), o movimento fundamental do evento Cristo é de descida e não de subida. Ressalta também a admirável filantropia (amor) de Deus e a intenção de divinizar os homens, inserida na encarnação:

Admira a filantropia do Verbo, que aceita ultrajes por nossa causa, a fim se sermos honrados. [...] Ele se fez homem para que fôssemos deificados; tornou-se corporalmente visível, a fim de adquirirmos uma noção do Pai invisível. Suportou ultrajes da parte dos homens, para que participemos da imortalidade. Com isso nenhum dano suportou, sendo impassível e incorruptível, o próprio Verbo e Deus. Mas, em sua própria impassibilidade guardou e preservou os homens sofredores, em prol dos quais tudo isso suportara. (SANTO ATANÁSIO, 2002, p. 170).

 

3)      Leão Magno (395-461 d.C.), o Lógos assumiu a forma de servo sem deixar a forma de Deus, elevando o que é humano sem diminuir o que é divino. E o esvaziamento da encarnação foi um inclinar-se da misericórdia e não uma falta de poder:

 

O Filho de Deus é verdadeiro Deus, recebendo do Pai tudo o que o Pai é, sem começo temporal, sem variação e mudança. [...] O aniquilamento pelo qual passou por causa da restauração humana foi dispensação de misericórdia e não privação de poder. [...] o invisível tornou visível a sua substância, o supratemporal fê-la temporal, o impassível, passível. A força, porém, não haveria de se consumir na fraqueza, mas a fraqueza se transformaria em poder incorruptível. (LEÃO MAGNO, 1996, p. 165-166)

 

4)      Tomás de Aquino (1225-1274 d. C.)  citou  

Ser unida a Deus, na unidade de pessoa, não era conveniente à carne humana, pela condição da sua natureza, porque isso lhe sobrepujava a dignidade dela. Mas, foi conveniente a Deus, pela infinita excelência da sua bondade uni-la a si, para a salvação humana. (SUMA TEOLÓGICA VIII, 2002, p. 341).

 

Tomás de Aquino está discutindo a conveniência da união da natureza humana com a natureza divina na pessoa de Cristo, em relação à doutrina da Encarnação. Ele afirma que a união da natureza humana com Deus, na unidade de pessoa (união hipostática), não seria conveniente à carne humana considerando apenas a sua natureza. Isso se deve à limitação e dignidade própria da natureza humana. Ele argumenta que, pela condição da natureza humana, a união direta com a divindade poderia parecer inadequada ou excessiva, pois a carne humana é limitada e finita em sua essência.

No entanto, ele continua a explicar que, apesar dessa aparente inconveniência do ponto de vista humano, essa união foi, de fato, conveniente a Deus. A conveniência para Deus reside na infinita excelência de Sua bondade. Ou seja, pela perfeição e generosidade infinitas de Deus, Ele escolheu unir a natureza humana à Sua natureza divina para alcançar a salvação da humanidade. Portanto, para Tomás a Encarnação é uma expressão do amor e misericórdia divinos, superando as limitações percebidas da natureza humana.

Em Filipenses 2, Paulo fala sobre como Cristo, sendo de natureza divina, não considerou a igualdade com Deus como algo a ser agarrado. Em vez disso, ele se esvaziou, assumindo a forma de servo e se tornando semelhante aos homens. Essa renúncia à posição exaltada é um ato de humildade extrema. Da mesma forma, Tomás de Aquino aborda a ideia de que a união direta da natureza humana com Deus pode parecer inconveniente ou ultrapassar a dignidade natural da carne humana. No entanto, Deus, em Sua infinita bondade, escolhe unir a natureza humana à divina para a salvação.

Ambos os contextos expressam a ideia de uma condescendência divina, onde Deus, em Sua generosidade e amor, escolhe se relacionar de uma maneira que vai além das expectativas humanas, assumindo formas ou naturezas que podem parecer inadequadas ou incompatíveis à primeira vista.

 

Referências

·         ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São Paulo: Paulus, 2004. Coleção patrística.

 

·         SANTO ATANÁSIO. A encarnação do Verbo. Tradução de Orlando Tiago Loja Rodrigues Mendes. São Paulo: Paulus, 2002. Coleção patrística.

 

·         SANTO TOMÁS DE AQUINO. SUMA TEOLÓGICA: o Deus único. Tradução de Aldo Vannucchi e outros. São Paulo: Loyola, 2002. v. 1. Parte I-Questões 1-43.

 

·         SUMA TEOLÓGICA: o mistério da encarnação. Tradução de Aldo Vannucchi e outros. São Paulo: Loyola, 2002. v. 8. Parte III-Questões de 1-59.

 


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